Monday 24 May 2010

Sombras na Floresta

Este pequeno conto, da minha autoria e extraído do primeiro livro das "Crónicas de Ylfeheim", será submetido para a Revista Bang!, da editora Saída de Emergência.

Vamos ver se consigo agarrar esta grande oportunidade, para resgatar Ylfeheim das trevas da minha gaveta...
Todos estão convidados a dar as vossas opiniões.

~Sombras na Floresta~

Há muito que o Sol desaparecera, engolido pelas copas das árvores que rodeavam a pequena clareira onde dois vultos se agachavam o mais perto possível de uma pequena fogueira, tentando se aquecer e abrigar do vento gelado, que assobiava por entre os galhos retorcidos da densa floresta.
A figura mais pequena tremia nervosamente, enquanto tentava fazer um guisado com ingredientes que diligentemente desembrulhava e atirava para um pequeno pote de pernas de ferro fundido, a outra figura mantinha-se silenciosa olhando pensativamente o fogo lambendo o pote e fazendo o seu interior borbulhar incansavelmente.

- Achas que eles continuam atrás de nós? - perguntou baixinho o pequeno vulto. À luz do fogo os seus olhos cor-de-mel esbugalhados, olhavam expectantes o seu companheiro, como se todas as respostas a todas as perguntas pudessem ser respondidas por ele.

Um pequeno movimento, o crepitar do fogo, fez com que o outro olhasse o pequeno elfo assustado.

- Se continuam, não os consigo sentir. - levantou o rosto, e o seu rosto delicado contorcido pela preocupação ficou iluminado, expondo a sua marca distintiva, os seus olhos desiguais: um verde e um azul. - depois de um pequeno momento de silêncio, a sua voz melodiosa soou de novo. - Podemos dar-nos ao luxo de pernoitar aqui ... a floresta é antiga e não adormeceu ainda, se for preciso protecção ela ir-se-á encarregar disso, Sanku.

O pequeno elfo estremeceu ao ouvir o seu nome e ao tomar consciência pela primeira vez que aquilo que pensava ser apenas o fruto da sua paranóia, afinal era real e estava vivo e vigilante. Nunca havia gostado destas coisas de magia e que não conseguisse agarrar e atribuir-lhe um valor, mas desde que fôra apanhado neta confusão toda que passava a maior parte do seu tempo a lidar com coisas estranhas e incorpóreas, que se moviam nas sombras e nos recantos escondidos da sua realidade. Olhou para a mulher sentada do outro lado do fogo. Se ele estava confuso e horrorizado com o que vinha a presenciar nos últimos meses, o que se poderia dizer acerca dela? Um mero humano, arrancado à força e sem qualquer aviso, do seu mundo, da sua realidade e da sua vida. As transformações sofridas, as lembranças que lhe assaltavam a memória, as traições que sofrera no pouco tempo que estivera deste lado do Portal ... se ele estava assustado, confuso, perdido e revoltado, o que dizer de Isabel?

- O que foi Sanku, sentiste alguma coisa, ou foi só alguma coisa que te passou por essa cabecinha? - indagou Isabel, mostrando os dentes brancos sorrindo sardonicamente. hoje a disposição dela era como a noite de lua nova, negra, espessa e profunda. - Sabes o que te acontece se tentares roubar alguma coisa. O que cá encontrares, cá fica, entendido?

Com um aceno da cabeça, o pequeno elfo deu a entender que as suas pequenas indiscrições não se iriam repetir, pelo menos enquanto permanecesse ao alcance de Isabel, só de se lembrar o que acontecera da última vez, sentia todos os seus pêlos ficarem eriçados.
Sem uma palavra serviram-se do caldo que fervia no pote e tentavam aquecer-se o melhor que podiam, usar magia estava fora de questão, pois ao menos morrer de frio era rápido e nada doloroso comparado com o que os esperaria caso os seus perseguidores os detectassem.
Estavam na estrada, em fuga, há mais de duas semanas, pelo menos pelas contas de Isabel. A lua já quase completara um ciclo completo, e os seus perseguidores não davam sinal de abrandar. Em dias em que o vento estava a favor deles, Isabel conseguia sentir-lhes o cheiro, ouvir os cães que lhes sentiam o rasto, nesses dias o seu rosto torcia-se de preocupação e o seu passo e pulso aceleravam de tal forma que Sanku ficava sempre para trás, tendo que ser arrastado metade do tempo, amaldiçoando os Pais Celestiais e os demónios que o haviam arrastado para esta situação tão desesperada.
Isabel comia calmamente o aguado caldo de carne seca e legumes selvagens, sentindo o calor dele penetrar profundamente, aquecendo-a. Olhou Sanku enquanto este sorvia a sua parte do caldo. Apesar de tudo o que ele era e pelo que passara, ali estava ele teimosamente do seu lado. De certeza que se ele houvesse escolhido ficar para trás, no Palácio de Tiril, que ganharia e teria mais tesouros dos que poderia carregar consigo, mas não, ali estava ele, enroscado numa pesada capa de feltro, encharcado e enregelado até aos ossos, tentando partilhar com ela um mísero caldo de carne seca e demasiado salgado. Isabel fechou os olhos, enquanto sentia a tigela nas suas mãos aquecê-la e agradeceu profundamente aos Pais Celestiais pela casmurrice de Sanku, que mesmo contra a sua vontade a seguiu.
O mundo do outro lado do Portal, ali naquela clareira, parecia um sonho distante, com os seus carros e máquinas, telemóveis e florestas de betão, o que estariam os seus amigos a fazer, será que ainda a procuravam, ainda se lembrariam dela, iria regressar lá algum dia? A sua disposição negra regressara, enquanto se tentava lembrar do que poderia ter sido a sua vida, se não tivesse sido forçada a atravessar, o Portal, há quase um ano atrás, fechou os olhos com mais força ainda, tentando concentrar-se na floresta ao seu redor.
O vento soprava e assobiava impiedoso por entre os ramos e os galhos retorcidos das velhas árvores, que gemiam e queixavam-se da força do irmão vento que as açoitava, as aves nocturna piavam aqui e ali em resposta umas às outras e às pequenas criaturas que corriam pelo chão atapetado de folhas tentando arranjar alimento. Dezenas de asas membranosas cruzaram o céu da clareira, numa explosão de som e movimento colocando todas as criaturas em sobressalto. Depois o silêncio regressou à floresta e tudo estava como devia estar, a dormir ou vigilante, esperando uma presa desprevenida. Excepto, excepto um barulho cadenciado, que não encaixava naquela paisagem pintada de folhas. Isabel abriu os olhos e calmamente falou para Sanku, interrompendo o seu discurso sobre as virtudes das bolsas mais leves na saúde das Senhoras da Corte.

- Temos companhia, continua a falar normalmente mas prepara-te. - dito isto, Isabel pousou a mão no seu bastão e esperou. Sanku continuou a falar normalmente, mas o seu corpo todo tremia que nem varas verdes, antecipando o ataque.

O barulho cessou e sem qualquer aviso um enorme homem de cabeça rapada abateu-se sobre o pequeno elfo, Isabel levantou-se do seu lugar ao fogo e rodando sobre si, atingiu outro homem que ainda se escondia por entre as sombras.
Enquanto Sanku se debatia ainda com o primeiro assaltante, mais dois se juntaram ao que se batia com Isabel, e ela parecia estar a aguentar-se bem, enquanto ele estava deitado no meio das folhas pisadas, debaixo de um assaltante corpulento e malcheiroso.
Isabel tentava a todo o custo, evitar que um dos homens se colocasse atrás de si, pois assim ficaria em maus lençóis. Ela estudou-os com atenção e reparou que eles não tinham uniformes e estavam demasiado esfomeados e esfarrapados para serem assassinos contratados pelo rei, por isso, deveriam ser do pior tipo de criminoso: ladrões, criaturas imprevisíveis e impiedosas.
Sanku mordera o seu atacante e conseguiu esgueirar-se por entre as suas pernas, tentando ir em auxílio da companheira, ela podia ser muito boa, mas três adversários era demais, até mesmo para ela. Enquanto se tentava esgueirar por entre os assaltantes e os carvões em brasa espalhados pelos pés em luta, Sanku não se apercebeu que o ladrão careca o havia cercado e sem mais demora deitou o pequeno elfo ao chão, prendendo-o com o seu peso massivo, sem escapatória possível. Sanku tentou gritar, alertar Isabel, para a sua situação, mas todo o ar havia abandonado os seus pulmões.
Isabel debatia-se com o seu bastão, gotas de suor escorriam-lhe pelo rosto abaixo. Cada vez mais lhe era difícil manter os três homens afastados mas eles não pareciam minimamente afectados pelas suas investidas. Isabel movia-se graciosamente, tentando a todo o custo evitar que algum deles se colocasse atrás dela, pois aí o jogo acabava, para ela. Pontapeou um dos assaltantes na garganta, deu meia volta e baixando-se varreu os joelhos de outro que se aproximava dela rapidamente, derrubando-o. Enquanto o primeiro se debatia para recuperar o fôlego, Isabel dirigiu-se para o assaltante, no chão e com o punho aberto, esmagou-lhe a caixa torácica, com um som tão arrepiante de ossos a quebrar e carne a ceder que Sanku sentiu o pouco que comera naquela noite regressar à garganta. Um som gorgolejante foi o sinal que o último assaltante que se mantinha ainda de pé, precisava para perceber que aquela rapariguinha afinal era perigosa. Isabel voltou a exibir os seus perfeitos dentes brancos, naquele sorriso que gelava o sangue a Sanku. Mas antes que tivesse tempo para reagir, o bastão de Isabel assobiou pelo ar e atingiu-o em cheio no estômago fazendo-o dobra-se sobre si, dando tempo a Isabel para se recompor.
Ela deu duas piruetas para trás, o ódio nos olhos do homem fizera-a vacilar e por causa disso, falhou o alvo, agora tinha que recuperar distância entre os dois. Aí reparou que o primeiro homem que havia derrubado tentava agora levantar-se, Isabel aproveitou o momentum do salto e atingiu-o com o seu bastão em cheio no peito, menos um. Sem que se apercebesse o outro homem de olhos carregados de ódio, havia se aproximado dela e com apenas um sussurro terminou tudo:

- Apanhei-te! - dito isto, atingiu Isabel na parte de trás da cabeça, e perante o terror de Sanku ela caiu no chão, no meio das folhas pisadas.

Sanku estava horrorizado, não conseguia perceber o que se passava, interrogava-se porque é que a floresta se mantinha tão silenciosa perante aquela cena, não era suposto as sombras dançantes daquela floresta protegerem-nos do mal, tal como Isabel tão confiantemente lhe prometera?

- Estás com medo, ratinho? - o ladrão careca, sorriu a Sanku, mostrando-lhe os seus dentes tingidos de negro e afiados, Sanku por entre todo o medo que o gelava pensou que este homem estava muito longe de casa. - Então ainda não viste o que vos vai acontecer...

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